quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Estrela ( CONTO CIGANO)

Pela Janela do meu vurdon, imagino o espaço, sou parte dele, e meu coração é o silêncio e o grito do Universo. Em meu coração existe uma galáxia de sentimentos, e o amor....ah o amor...Porque o amor insiste em ser dor e machucar minha alma? Será que todo mundo sente o amor doer também? Como navalhas incandescentes , ferem, sangram...
A Lua iluminava o acampamento em sua plenitude total, e as estrelas, pequenas luzes acendendo e apagando no firmamento, refletiam minhas duvidas e incertezas...

O amor bateu a porta do meu coração cedo demais. Quando fiz 14 luas de vida, tinha a alma colorida e ecoavam em meu peito a canto dos pássaros, fui tirada para uma dança, por um cigano do acampamento.Ele chamava-se Alejandro, nunca nos falamos, sempre fui muito tímida e alem do mais, meu pai sempre foi muito severo, me retendo em atividades junto com as mulheres, nunca tivemos acesso, eu e o Alejandro, para conversar, nem tão pouco nunca ousei encarar qualquer pessoa de sexo oposto, no acampamento ou fora dele, nas raras exceções que saia , indo a cidade junto com minha ama de Leite , Verusca, ganhar algumas poucas moedas com a pratica da “ buena dicha”.
Mas neste dia em que o acampamento celebrava o nascimento de mais uma criança no seio de nossa família, pude dançar, meu pai dizia que já estava na hora de eu virar uma flecha e voar pelo céu, eu não entendia muito bem na época, o que ele queria dizer com isso, mas hoje entendo.
Na noite mágica em que fui apresentada a todos como mulher, o Lua estava em seu ciclo crescente, como meus hormônios e meu coração, que cresciam em cada palavra entoada pelo meu pai, me oferecendo a Natureza como parte de sua contribuição ao Universo.
Como parte da tradição, recebi meu terceiro nome, ESTRELA, com ele, a partir deste dia trilhei meu caminho.
Alejandro então , se aproximou , percebi sua presença, mas não tinha coragem de encará-lo, de olhar em seus olhos.
- Estrela que brilha no céu e agora aqui na Terra, olhe-me nos olhos, pois estou querendo ver através deles o brilho do seu coração.
Tocou levemente em meu queixo, forçando-me a erguer a cabeça e encarar seus olhos.
Ahhh seus olhos, nunca tinha visto olhos negros tão lindos! Via minha imagem refletida nos olhos de um homem pela primeira vez, e pela primeira vez meu coração teve um dono.
As músicas começaram a tocar e eu, com o coração trasbordando de emoções que não compreendia, levantei minhas mãos ao alto, e rodei, girei minha saia tão rápido como as palmas que ecoavam nos acompanhando. Sem com isso, em nenhum momento sequer, desviar meus olhos ,dos olhos de Alejandro.
Neste momento eu era a Flecha que meu pai disparou, era a Estrela surgindo na noite, era a menina que se tornou mulher!
Ao termino da música, agradeci ao Alejandro a dança com uma reverência e sorri para meu pai, que a distância fumava um charuto e tomava seu vinho em sua inseparável taça de cobre. Precisava fugir dali, precisava entender o porque meu coração batia tanto e tão forte ,que tinha a sensação que iria desmaiar a qualquer momento, precisava saber que doença era aquela que justamente na noite que tornei-me mulher, abateu sobre meu corpo atordoando meus sentidos.
Afastei-me das luzes do acampamento, da musica, das pessoas dançando e rindo alto, as vozes foram diminuindo na medida em que eu avançava pela mata que cercava o acampamento.
Sentei em uma pedra e comecei a chorar sem entender o porquê minhas lágrimas manchavam meu rosto, era uma aflição, uma dor, um atordoamento e ao mesmo tempo uma alegria, que elevava e me atirava ao chão em ritmos descompassados.
Tentei serenar meus pensamentos e meu coração respondeu a essa tentativa, pois já não batia tão rápido. Foi neste momento que novamente me vi refletida nos olhos negros.
- Porque a Estrela nos privou de seu brilho em nosso acampamento?
- Me retirei por alguns momentos, pois sinto que estou ficando enferma. Meu pai pede meu retorno?
- Não, mas eu vim até aqui para pedir que retornes e volte a iluminar minha noite. Me diz Estrela como posso eu curar sua enfermidade e te trazer novamente ao céu do acampamento?
Meu coração até então quieto em meu peito, voltou a pular e as lagrimas voltaram a descer pelo meu rosto.
-Porque choras? Sente-se mal?
Alejandro enxugou minhas lágrimas, e com o toque de suas mãos meu corpo se estremeceu, como em um terremoto que agita a Terra.
- Já estou melhor, vou voltar ao acampamento.
Ele segurou minhas mãos geladas me ajudando a levantar e assim caminhamos juntos, de mãos dadas. Sem saber eu, que a partir deste momento minha vida estaria ligada a dele.
Uma estação da Natureza havia se passado desde a noite em que entreguei meu coração aos olhos Negros. Nessas noites meu sono demorava a chegar, e sempre me pegava a pensar na intensidade daquele olhar, que insistia em devorar minha alma e trazer a insanidade aos meus pensamentos.
Alejandro e eu sempre nos cruzávamos entre uma atividade e outra no acampamento, e ele sempre me olhava com a mesma intensidade do primeiro dia, com a diferença de que meus olhos agora também procuravam os dele, sem medo, sem vergonha.
Passávamos por uma fase difícil de escassez de alimentos e trabalho. Nossas forjas já não estavam sendo tão procuradas na região e a fome teimava em bater nas lonas de nossas tsaras, o pão era dividido em pequenos pedaços e o leite, roubado durante a noite das fazendas, eram oferecidos somente aos velhos e crianças. Ninguém tinha muitos motivos pra sorrir. As cores do acampamento deixaram de brilhar... era chegada a hora de partir em rumo a outras trilhas.
Meu pai se reuniu a outros homens do conselho, decidiriam qual rumo tomar. Havia muitos problemas, algumas carroças não estavam em condições de viajar e alguns cavalos tiveram que ser vendidos para garantir o sustento de todos, enquanto esperávamos por tempos melhores.
Ficou decidido que algumas famílias iriam permanecer no acampamento, enquanto os outros partiriam para o futuro incerto. Dentre as famílias que ficariam, estava a de Alejandro.
Mas não havia tempo para pensar, precisávamos carregar os vurdons, desmontar as tendas, salgar o pouco de carne que levaríamos de provisão.
Estava enchendo os jarros de água que levaríamos, quando Alejandro chegou.
-Preciso falar-te Estrela, pela ultima vez...
- Cala-te não diga isso! Logo voltaremos a nos reunir e vamos poder dançar, e brindar os tempos melhores!
- Preciso antes disso, abrir-te meu coração Estrela. Desde a noite em que dançamos, você fez morada em meus pensamentos, sou seu eternamente, e só você terá a chave do meu coração!
Meu coração se alegrou pela primeira vez em dias, era correspondida em meu amor.
- Alejandro, confesso que desde que me enxerguei em seus olhos, sou sua, e sei que seremos muito felizes, nossas famílias são amigas e farão gosto que nossa união seja concretizada.
-Você ainda não sabe? No grande conselho, o Barô decidiu que minha família ficaria, pois acertaram há pouco tempo meu casamento com uma moça de outro clã. Com o dote recebido, poderemos nos reerguer manter a sobrevivência dos que aqui ficarem.
A partir deste momento soube que o Céu poderia se tornar noite de repente, e que a terra poderia se abrir aos meus pés, pois me sentia caindo num abismo, não consegui dizer nada, nem olhá-lo, somente peguei o Jarro de água, e fui embora, sem saber se meus pés tocavam a terra ou se a terra em ondas de vibração me levavam de volta ao acampamento.
Todos estavam se despedindo, trocando presentes de boa sorte e eu retribuía os abraços com gestos maquinais, como se o tempo estivesse parado. Subi no Vurdon, e começamos a jornada, antes dos cavalos tomarem velocidade, meus olhos cruzaram com os de Alejandro, montado em seu cavalo em vinha na direção de minha janela. Não precisávamos dizer nada, pois nossos olhos sempre falaram muito mais que nossas palavras, mas senti vontade de gritar a ele, e assim o fiz:
- Eu prometo ao vento e a noite, prometo a Lua e as estrelas, que um dia voltaremos a nos encontrar!!
Ele nada disse, mas seus olhos antes transparentes ficaram marejados e opacos.
Vivi a partir de então, sem mais o brilho nos olhos, nosso acampamento sobreviveu, entre altos e baixos, Nunca me casei, nunca esqueci o Alejandro, o reflexo dos seus olhos sempre permaneceu em minha alma.
Acendi a fogueira que levou o espírito de meu pai para o clã dos nossos ancestrais, a velhice tomou conta do meu corpo, e a estrela dos meus olhos estão se apagando pouco a pouco.
Certo dia nosso acampamento parou nos arredores de uma grande cidade, precisávamos ir até o comércio local para trocar algumas panelas que meu clã forjava com cobre, por mel e algumas outras provisões. Reuni alguns homens mais fortes do acampamento para me acompanhar e parti.
A estrada que nos levava até a cidade era de difícil acesso, a carroça atravessava o percurso com dificuldade. Foi então que escutei gritos dos homens que montados em seus cavalo s seguiam a frente.
Paramos no meio da estrada e desci com a dificuldade característica da minha idade avançada.
Carlos, um cigano alto e esbelto, veio até mim, comunicar que havia um senhor ferido na estrada.
Sem pensar duas vezes ordenei que levassem o homem para a carroça, e retornamos ao acampamento.
Instalei o desconhecido entre as almofadas confortáveis da minha tenda. Ele me parecia muito ferido, tinha os cabelos Brancos e trajava roupas rotas e sujas, imaginei que não era de família abastada.
Passei dias em volta de seu leito, combatendo a febre que devorava seu espírito, ministrei todos os chás curativos que aprendi, e passei emplasto de ervas em seus ferimentos, sem contanto ele acordar ou mostrar algum sinal de melhora.
Foi então, numa noite com muitas estrelas que ajoelhei ao lado de seu corpo enfermo e febril e elevei sincera prece ao Pai maior. Fui surpreendida pelos olhos negros me fitando, e vi novamente meus olhos refletidos nos dele.
Meu coração até então adormecido, voltou a pulsar o Amor... Era Alejandro, o amor de minha vida e dono do meu coração.
Com dificuldades ele me contou sua história:
No dia de seu casamento, Alejandro se arrependeu por não ter lutado por nosso amor, decidiu romper com o compromisso e por essa atitude foi banido do clã. Saiu sem ter direito a nada, sem nome e sem família. Andou por muitas estradas procurando nosso acampamento, mas nunca conseguiu nos alcançar. Se entregou a vida, a bebida e ao jogo, depois de tantos anos desistiu de me procurar. Havia acabado de ganhar numa mesa de jogo uma quantia considerável e estava viajando quando foi agredido e saqueado na estrada. E assim o encontrei.
Agradeço ao vento, às estrelas a lua e a noite, por terem me ajudado a cumprir minha promessa. Enfim nos reencontramos!
Embora nossos corpos estejam fracos pela passagem do tempo, nosso amor continua inalterado. Temos pouco tempo para vivenciar o amor, aqui na terra, mas tenho certeza que serão dias de alegria.
Ao som da música do vento, dancei pela segunda vez em minha vida... e ele deitado em convalescência nas almofadas de minha tenda, não desviava seu olhar do meu...
E disse:
A Estrela da minha vida volta a brilhar!

Jade Camargo

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